3 de mai. de 2014

O dia que o amor morreu - Tati Bernardi



Na manhã que o amor acabou tinha urina no chão da sala. Uma pocinha bem pequena perto da planta. Fiquei na dúvida se era água caída do pratinho do vaso ou malcriação de bicho. Talvez eu tivesse regado e dado um quarto de antibiótico pra cachorra que estava com tosse. Na dúvida, pensei em fazer de novo. Sem saber, como expliquei, se era repetido. Água em dobro e metade do remédio seriam demais. Mas não fazer, caso fosse a primeira vez, seria de menos. Eu seco, eu rego, eu medico. Os imperativos simples e práticos de verbos serviçais burlavam dores pessoais de pronomes.

Na manhã que o amor acabou, almocei na minha mãe. Ela contou que a colcha colorida não tinha saído bonita na foto do site da imobiliária. Eu chorei e ela quis saber se colcha colorida me lembrava alguma coisa. Não lembrava. Mas as frases com alguma graça e nascidas pra nada emprestavam o charme da sua promessa, sempre me sabendo em urgências dosadas. Eu retornava com a felicidade direta de quem é procurada antes de se proteger e apertava suas letras comprovando, com minha digital, uma existência catalogada. Meu pensamento era um carimbo no horizonte toda vez que você gostava de ouvir.

Foram duas lágrimas. A primeira despencou rapidamente, como um suicida magrinho e sem talento. A segunda ficou um tempo ninada pelas bordas até que caiu já quase seca nem passando da metade do rosto. O sofrimento foi tão ralo que sequer alcançou o nariz. Fiquei com preguiça de alguma saudade surpresa crescer escondida e me apunhalar em brechas de fraqueza e carinho, mas ela nunca apareceu e agora, se chegasse, seria só uma fantasia bordada de última hora pelo tédio. Na manhã que o amor acabou, eu cismei que probióticos me protegem de não pegar gripe e que pego gripe sempre que o amor acaba. Me enchi de iogurte e isso me mostrou uma novidade em ver um amor acabando: era momento de adorar cabisbaixa uma história mas eu estava mais ocupada em me lançar cuidadosa aos dias que nem existiam.

 Que nome tem estar cagando pra única coisa mais importante do mundo? Veja que desde o começo do ano passado, só pra citar tempos recentes, o amor já acabou três vezes. Acabou em março, em agosto e agora em fevereiro. Mas, só porque o cinismo nos dá gosto pelo jogo do contrário, posso dizer também que, desde o começo do ano passado, o amor já começou três vezes. Começou em janeiro, em junho e em novembro. Temos uma média de três a cinco meses tanto pro amor começar quanto pra ele acabar. O que significa que logo mais tamos aí. E depois tamos aí de novo. Como se essa coisa que tanto aconchega a loucura, como se essa coisa que tanto acidifica os cortes, como se essa coisa que tanto vulcaniza os tamanhos. Não passasse de um ping pong exato que satiriza as metáforas de profundidade.

E só porque o cinismo nos dá gosto também pelo jogo do tudo a mesma merda. Até pouco tempo, tinha essa coisa de Nina Simone regida pela buzina de muco nasal no papel higiênico. Mas pra cada dia daquela semana em que o amor acabou, eu tinha uma entrega importante de trabalho e, se não me engano, uns dois almoços bem importantes e pelo menos um dos meus médicos bem difíceis de marcar. A vida seguiu tão normalzinha, eu falei pra minha analista. Tanto que você tá estranhando, ela respondeu. É. Sorrimos sem intensidade e duração, da casca que agora separava meu sangue de salivas. São águas que correm paralelas com uma pele no meio. Ela só disse “olha que bom” e ser tratada como uma pessoa não foi mais tão horrível. Eu amo pouco agora que não morro mais? Ela não respondeu. Depois mordi bem forte meu braço sem definir se era homenagem, despedida ou inconformismo. Ficou a suspeita de um espasmo de vício humilhado pela desimportância do costume.

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