Foi na ponta do Leme, no Rio. Parecia verão pleno, mas era apenas julho, um dia quente e azul, pouco mais de meio-dia, a praia cheia de gente. Já repararam como, em dias quentes e azuis na beira da praia, no Rio, todos parecem deuses? Nesse dia, pareciam. Não só as adolescentes de cintura fina e cabelos encharcados de sal, mas também as mulheres um tanto passadas, e os homens também, e até os velhos pareciam deuses cansados, mas deuses. As cores, talvez, as peles, não sei ao certo. Há sempre um toque de divino no humano em dias assim, pensei.
Da sombra, e vestido, porque não posso tomar sol, continuei olhando e bebendo uma água de coco, porque não posso beber álcool. E era um dia perfeito para torrar-se mesmo naquele tipo de sol dos horários mais impróprios que dermatologistas dizem ser assassino. Um dia perfeito também para empapuçarse de chope olhando o horizonte. Mas disso eu não me queixava, porque era um dia perfeito também para apenas contemplar o perfeito, mesmo sem poder fazer a maioria das coisas que o tornariam ainda mais perfeito. Digamos que naquele momento eu não fazia questão dessas tais coisas: tudo que precisava estava ao alcance talvez não exatamente das mãos, mas certamente dos olhos, o que já é alguma coisa.
Devo ter suspirado ou movido um pouco a cabeça para receber melhor no rosto a brisa com cheiro de algas, ou feito qualquer outro desses gestos típicos de quando se quer mudar de parágrafo por dentro, compreendem? Sei que não acendi um cigarro, seria um crime naquele ar, naquele azul, e sei ainda que não lembrei de nada acontecido há poucos ou muitos anos naquela praia onde vivi tantas coisas, tantas vezes. Para o futuro, também não cometi o erro de projetar o pensamento, pois sei que não tentei adivinhar se outra vez, algum dia, voltaria ali. Sem muita consciência do que fazia, não fiz nada que pudesse — a palavra é pedante e um tanto cristã, mas é a que quero usar — macular aquele estar ali.
Nos próximos segundos eu poderia quem sabe levitar, mas com isso chamaria muita atenção, talvez apenas entrasse num discreto satori tropical. A coluna ereta, o pensamento parado e mais vivo do que nunca, sem que ninguém percebesse. Foi então que alguma coisa — eu ia escrever “deu errado”, mas não, nada deu errado, o que houve foi só a continuação do que estava acontecendo, e só seria “errado” se o que estava acontecendo fosse “certo”, compreendem? Nem eu.
Mas o que houve — o tropeço, o solavanco, o esbarrão, a tosse no meio da área lírica —, o que houve foi um pensamento impiedoso e exatamente assim: não faço parte disso.
Não uma dúvida, mas uma certeza. Absoluta.
Sem inveja nem mágoa, revolta ou vontade furiosa de que pudesse ser de outra forma. Secamente, definitivamente, eu não fazia parte daquilo. Não por estar vestido e na sombra, não porviver noutra cidade, não pela água de coco em vez de chope. Por razões que não sei explicar; e nem precisariam tentar ser explicadas porque eram e, pior, continuam sendo completamente indiscutíveis.
Eu não fazia parte, e pronto.
Voltei lento e atordoado para o hotel.
A imensa janela de vidro do i8 andar dava para a praia. Cheia de sol, azul, turquesa, jade, cheia de gente viva. A janela não abria. Feito uma vitrina, uma jaula. Bebi água com gás, coca- cola, não lembro o quê, telefonei para algum número ocupado ou peguei o controle remoto e fiquei dando zaps frenéticos na tevê. Não sei o que se fez ou o que eu mesmo fiz depois. Sei, e isso com certeza absoluta, que não teve a menor graça.
Desde então, tenho uns agostos por dentro, umas febres. Uma tristeza que nada nem ninguém conserta. É assim que se começa a partir?
Zero Hora. 12/08/1995
Zero Hora. 12/08/1995
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