Eu velo seu corpo há muito tempo, estou sozinha no velório. Não há mais flores, nem pessoas, nem vozes ao fundo perguntando como tudo se estendeu, e porque eu me estendi. Agora, de longe, parece tão mais fácil te velar sozinha, somente eu com meu sentimento raso, sem muito glamour, sem melodia. Estou estática há tanto tempo olhando seu rosto em várias angulações. Angulações que mesmo quando estava vivo dentro de mim, eu não conseguia reparar. Você que viveu tanto dentro de mim, segue morto. Mas eu ainda insisto em vir vê-lo.
Estou pronta para te deixar e te enterrar de vez. Cada mês que se passou era como se uma pá de terra fosse jogada por cima do teu corpo magro. Cada dia que eu vivi na mais solidão completa de um ser humano, era um terço rezado para tua alma descansar longe daqui, e que rezava até mesmo para que pudesse te ver bem, mesmo que isso me custasse mais e mais noites chorando por algo que morreu. Mas eu repito para mim que não sou coveira. Não tenho que enterrar ninguém que ainda continua vivo.
Mais uma pá foi jogada, e essa parece mais cheia, sem condições de conseguir te resgatar dessa vez. E dessa vez não consigo mais te velar. O velório tá frio, tá nebuloso, e eu não sei se consigo me manter mais por aqui. As rosas estão fedendo. Eu estou fedendo. Cheiro de enxofre, de podre, de solidão pura. Você também fede, mas ainda há cheiro de familiaridade, cheiro de lar, cheiro de alguém que eu amei, e que se pudesse, eu ficaria aqui velando novamente.
Mas eu não sou coveira, e você não está morto de verdade. Só na minha história de agora, e eu sei que sou louca por querer que você renasça de novo, e eu quero renascer também, mas não tenho mais certeza se é novamente com você.
Eu não sou coveira, não, tá? E por isso, eu me nego a te enterrar. E enterrar a gente.
Mas eu queria te reviver novamente.
Reviver nossos passos, mas eu te destruí, você me destruiu, e é por isso que preciso te enterrar. Mesmo que seja só de mentirinha, só para continuar a viver.
Mas se desse, se pudesse, te levaria flores novas para te velar. Encheria teu lar de coisas novas e frescas, como nós fomos um dia, novos e frescos, não com muita vida, mas como um único propósito, o de não morrer, e de continuar vivo dentro de mim.